Memória do mar

O mar

sempre a olhar nossos caminhos, mesmo em terra

parece dizer o quanto nos afastamos, o quanto deixamos de ser

o que sempre fomos...

quase nem temos mais sal nos cabelos

e nossas roupas desgastam-se sem tocar a água...

Nossas casas estão longe da praia, ruindo lentamente.

A terra, na qual tanto andamos e de onde colhemos

o que era preciso, sem demasia, nos espreita em silêncio e

já não podemos mais tocá-la, as raízes que nos uniam  a ela

agora são as histórias que contamos aos mais jovens, mas

muitos já não prendem seus ouvidos nelas, as cores e as tintas

que as coloriam desbotam como o cal das paredes

 e escorrem pela praia vazia

As canoas observam lentamente o tempo

comendo suas bordas, paradas

longe da praia elas nem parecem canoas

mas apenas um toco que a maré lança na areia, roído pelos anos.

Um silêncio mareado paira sobre as praias

como se fosse o mesmo silêncio que se ergue das águas depois das tormentas

e vão surgindo nas praias as madeiras e restos dos naufrágios da noite...

Há rostos salgados de sol e queimados de sal

mirando o mar com o olhar indecifrável de um moai,

olhos que aprenderam a ler o mar através dos séculos

vindos de outros olhares mais profundos...

Ou são rostos de madeira talhada pelo tempo

sob velhos chapéus de palha na maresia dos dias ,

observando o mar e observando  as marés humanas

indo e vindo à deriva em seus próprios mundos

como barcos que nunca navegaram e ilhas que nunca se encontram?!

Velhos pescadores sentados à beira do tempo, sob uma sombra de árvore

que ainda tem na memória esses mesmos rostos ainda meninos

soltos nas areias como peixes no mar...

Será que vamos nos tornando ilhas num mar do tempo

a navegar nossos silêncios oceânicos cada vez mais fundos?!

 

Então um vento novo veio de longe, mas não era um vento natural,

era antes de tudo uma ilusão trocada pelo corpo, pela alma e pela vida,

na qual ter é mais necessário do que conviver e confundiram isso com a verdade  e

disseram que era necessário construir estradas, e

as estradas cortaram tantas árvores em tão pouco tempo

que era impossível conta-las, caindo sob os dentes de metal

das grandes serras e tratores.

Quem viu os olhos das crianças e dos animais

atordoados pelo ronco das gargantas dos motores?!

Depois disseram que não era mais permitido cortar algumas árvores

para fazer as canoas e chamaram isso de crime

mas a estrada chamaram progresso...

E nunca demos a eles escolher por nós o que é permitido ou não...

Cortaram as matas e cortaram o caminho para o mar...

Disseram que era necessário pagar pela terra

em que sempre habitamos, geração a geração,

e colocaram preços que não alcançávamos.

Quiseram nos convencer com documentos inventados em cartórios distantes

por gente que não sabia nem os nomes das praias...

Disseram que era terra do governo ou de pessoas que nunca estiveram aqui,

a não ser  para vir dizer que não eram nossas as roças, os caxetais, a restinga 

ou qualquer lugar onde andávamos livres como nossos antepassados indígenas,

e, assim como nossos antepassados, resistimos, mas

também estamos deixando de existir...

Disseram que éramos “iletrados” e vagabundos

porque as coisas que sabemos não eram as mesmas dos seus livros, e

não pensaram que talvez pudessem ter tentado aprender algo sobre o modo como vivemos

 ao invés de impor o que não conhecemos e

a  maneira com que vivíamos o tempo era diferente

daquela registrada nos relógios , mas o tempo que aprendemos

nos foi ensinado pela própria natureza através dos seus ciclos

Hoje, esses ciclos estão mudados de uma tal forma

que não mais sabemos o que dizer

quando olhamos o céu ou sentimos o vento ao amanhecer...

Mas não sabemos de que pode servir um diploma ou

um título de qualquer coisa

quando se está num barco que vai afundar, e não se sabe nadar...

Esse barco é o que temos feito com a Terra!

Conhecimentos diferentes de lugares diferentes

deveriam gerar algum tipo de  sabedoria unidos, mas muitos

são os que preferem destruir o que não entendem...

E muitos são os saberes que se perdem, e isso não nos parece

muito com desenvolvimento...

Os rios ainda seguem para o mar, mas parecem pesados, 

como se carregassem um grande fardo de lenha nas costas,

suas águas carregam odores que não existiam e os peixes

pouco a pouco foram desaparecendo e não há crianças

em suas margens, mas apenas plásticos, pneus, cimento...

Então disseram que estas seriam terras protegidas por lei

e chamaram de parque, mas não disseram nada

sobre proteger quem vivia nessas terras muito antes do parque,

nem sequer perguntaram nossos nomes!

Proibiram nossas roças porque disseram que ela degradava a mata,

mas é o mesmo tipo de roça que os índios praticaram por séculos

e eles eram muitos, cobriam toda essa terra...

Mas, quando olhamos, não nos parece que nosso plantio

tenha feito mais devastação em todos esses séculos

do que a que houve em apenas quarenta anos

desde que chegou a estrada e chegaram as casas imensas

penduradas nas costeiras com suas piscinas azuis e guaritas e vigias armados

nas entradas das praias.

E, de repente, as praias em que andávamos descalços

eram propriedade particular de alguns que nunca vimos

caminhar nessas areias antes e

fomos empurrados para longe da linha das marés.

Uns, não poucos, sucumbiram à tanta informação e valores estranhos

e partiram em troca de algo que não eram ou que não sabiam ser, outros,

enganados pela cobiça, que é mais ligeira do que as cobras do mato,

acreditaram no que a ilusão dizia e o tombo foi derradeiro,

uns ainda, foram ser caseiros de grandes casas vazias a maior parte do tempo, 

por um salário, um pequeno lugar atrás delas, para morar,

eles, que eram livres nesses terrenos...

Apenas mais um tipo de escravidão.

Casa grande e senzala.

A vida é grande demais para caber em salários medíocres,

para alguém se pretender dono do chão e da água e das árvores.

Não seria mais inteligente ser irmão dessas coisas, utilizando-as quando preciso,

mas sem exauri-las, para a própria sobrevivência,

e para a sobrevivência dos filhos e dos filhos dos filhos...

Mas pode ser que dizer isso, por mais óbvio que seja, 

porque não somos nós que dizemos, mas a própria terra e o planeta,

pode ser que dizer essas coisas

seja incompreensível aos seus ouvidos, tão habituados a só ouvirem

as suas próprias palavras.

Mas nada disseram sobre as casas que colocariam em cima do jundu.

Talvez não soubessem o que é jundu,

Talvez achem normal,

em nossa ignorância pensamos que justiça era mais do que apenas

uma palavra para uso exclusivo

de alguns poucos.

E esperamos por ela até hoje, mas já sabemos que ela não virá, ela habita

as taças de vinho nas mesas das mansões com vista para o mar,

as sacadas dos hotéis dependurados nos morros

ela anda em grandes carros importados, não em canoas ou

descalça por trilhas nas matas.

Pensamos que as coisas boas que disseram que viriam eram para todos e

não só para eles mesmos...

Agora quando passamos por antigos caminhos de terra que foram asfaltados

olhamos

e vemos remos cruzados enfeitando paredes imensas 

onde antes havia apenas a encosta e o mar, 

vemos réplicas de canoas

penduradas sobre varandas vazias e nos parece um tanto sem sentido

enfeitar as casas com objetos que mais parecem de saque.

Isso é muito parecido ao que os piratas e os portugueses e espanhóis faziam...

Mas não é a memória que é curta, é a ganancia que é longa e

a história é sempre contada por aqueles

que roubam do outro a chance de conta-la, e de vive-la,

quando todos são capítulos únicos do mesmo livro da vida,

escrito página a página por milhões de anos 

por todas as espécies que já habitaram esta terra.

A nenhuma delas é dado o direito de rasgar estas páginas!

Porque então as rasgamos!

Nossa própria história!

 

O mar

continua batendo nas costeiras das ilhas remotas

como a contar uma história que nunca se recorda

mas que todo dia apaga-se um pouco,

em cada remo que deixa de cortar as águas, em cada rancho esquecido,

em cada rede que jaz abandonada, em cada canoa que apodrece num canto,

em cada nascer do sol e em cada poente

Até que um dia o mar não nos reconheça mais e nós

não nos reconheçamos no espelho de suas águas.

Onde estaremos quando os últimos peixes forem arrastados pelos grandes navios industriais

 que rasgam o ventre das águas incansavelmente?!

Quando as casas ruírem de volta ao barro do chão que as moldou?!

Quando cada palmo de chão for loteado e cimentado?!

Quando o último acorde da última rabeca ecoar

nas ruas vazias numa madrugada perdida no tempo

e procissões de lembranças passarem pela última vez

sob as janelas que se fecham.

Passaremos, mas aquilo que aqui vivemos

nestas terras que viram gerações crescerem e sucederem-se

e plantarem e remarem e nadarem nessas águas e voltarem

para a terra que a todos recebe sem perguntar o nome,

tudo isso de algum forma ficará?!

As coisas que aprendemos com o ciclo das estações,

as maneiras de compreender as plantas e os animais, dos quais

dependemos tanto quanto cada ser vivo depende do outro para

que todos tenham sua cota de existência nesse mundo,

os modos de tratar tudo aquilo que nos rodeia

sem a pressa de modificar o natural

Nunca dissemos que nossa cultura era mais sábia do que qualquer outra

pois, todas, em todas as partes remotas do mundo

são apenas faces distintas de uma só cultura, a humana

e como em toda a natureza, é a diversidade que garante a vida.

Também nunca entendemos porque nos classificaram, rotularam e

diminuíram em comparação com esse modo de vida tão destoante

com toda a vida ao redor, não nos parecem tampouco sábios

aqueles que nos chamam de tolos.

Ficará algo?!

Quantos pescadores lançarão suas redes daqui a uns anos?!

Quando os mais velhos repousarem suas vidas e seus barcos

no oceano do tempo solto.

Quando as águas já não tiverem mais lembrança dos vastos cardumes

que viajavam pelas ilhas do sem fim,

quando os rios sufocarem sua voz de água para sempre

e os manguezais não mais serem os berçários do oceano, pois

é roubado das espécies o tempo delas crescerem.

Não existem culturas em museus, mas apenas restos e registros delas,

museus são grandes mausoléus de objetos que sempre duram mais

do que quem os fez...

Uma cultura habita o dia a dia de um lugar, de uma gente, é uma relação

não uma página já pronta, assim como o mar

é sempre o mesmo mas nunca igual a cada dia.

E não foi em um dia que aprendemos a ler as entrelinhas das ondas e os caminhos do vento...

A humanidade é uma transição de culturas, mas sempre tem prevalecido

a transição pela força e para onde esse modo de agir nos levará

é algo que já está acontecendo...

E o que se perde aqui

é o que se perde cada vez que que num canto distante, numa ilha ou

em qualquer lugar do mundo,

uma aldeia desaparece, um povo morre, uma floresta acaba, e com ela,

 espécies muitas vezes nem conhecidas, mas tão importantes quanto tudo,

substituídos por um número num papel.

Isso pode parecer distante para alguns, ou para muitos, mas

também foi para nós um dia...

Talvez algo restará,

no calor da terra, alimentando-a com nossa frágil e efêmera matéria ou

no ventre do mar, de onde um dia todos nascemos, nesse olhar que perdura

sobre o tempo em forma de alguma canção ou poema,

permaneceremos.

Talvez num olhar puro de uma criança em frente ao mar, descendente

de um povo que por muitos séculos integrou-se a um lugar

de forma muito próxima ao que poderia se chamar de harmonia, talvez

algo fique ainda por uns tempos na memória do mar, ou

enquanto o mar existir

porque a memória do mar

é mistério

que ninguém sabe explicar. 

 

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