O tempo do mar
Conversava com as plantas, com as ilhas, até de longe e com os ventos do mar e do além mar... isso a menina sabia e muito mais imaginava sobre a velha, senhora, vó. Todos os dias quando a menina acordava a avó já estava de pé, café de cana já quentado e o cheiro de farinha de milho junto, rodeando.
Ela era instruída nos mistérios da terra e do mar, isso ouvia todos da vila dizerem, com um misto de respeito e espanto. Mas a menina gostava também dos silêncios da velha senhora de pele morena visitada pelo sol todo dia e de longos cabelos e tão brancos como a crista de uma onda... como as antigas ondas que traziam a canoa do pai. Em que praia será que elas batem agora?!...
Não sabia há quanto tempo morava com a vó, mas achava que era bastante pois o tempo anda diferente perto do mar, enferruja, passa lento, encrespa, bate na costeira... e às vezes faz o mar cair por cima do jundú como se tivesse sede e quisesse beber os rios direto nas cachoeiras, sem esperar que eles cheguem até a praia.
Essas coisas a menina olhava e se enveredava por dentro delas no pensamento de forma que todos diziam ter “puxado pela avó” nessas coisas de mar e de terra e de plantas e de peixes e de gente, desse e de outros mundos.
Mas por enquanto a menina gostava mais e se interessava era nas coisas desse mundo mesmo. E havia tanta coisa a ver e a avó era um caminho de aprender. Caminho antigo, vindo de muitas luas e estações. Como os troncos de cedro ou guapuruvu que viravam canoas, muitas luas crescendo, subindo, espiando os ventos por alto até os homens cortarem e fazerem as canoas... Mas aí o tronco levava a memória da árvore de espiar do alto as águas e já conhecia muitos dos caminhos do mar. Mas não todos, que todos nem o próprio mar sabe.
Essas coisas pensava a menina, nas suas andanças pela praia, pelo quintal, pelos mangues, ou sentada na areia, apenas olhando... “oceanolhando as coisas”, como a avó dizia. Ela gostava do jeito que a velha tratava as palavras, misturando-as, como peixes na rede, ou inventando novas palavras e fazendo elas nadarem no ar com um jeito de brisa levinha que vai sumindo...
Ela lembra que a avó sempre fala que as palavras são como as plantas, podem curar ou podem adoecer a carne. Por isso a velha tinha muito cuidado com o tratar das plantas, e das palavras. Nunca viu a avó escrever no papel, mas a menina sabia que a velha escrevia com outras coisas, com raízes, com ervas, com cascas e cipós. Escrevia coisas que a mata dizia através das plantas e da terra e isso era uma coisa que a menina queria aprender a ler. E a avó era um caminho de ensinar.
Muitos dias acompanhou a avó pelas trilhas, pelas praias desertas, pelas grutas e rios do sertão... catando ervas, cipós, cascas, observando os bichos e o chão, aprofundando o sentir dos cheiros, bebendo nascentes com os olhos...muitas madrugadas foi com ela até a beira do mar ver o pai embarcar na canoa com os camaradas e seguir deslizando sobre o verde azul de águas, à procura de peixes e destinos, o beijo salgado na testa, os cabelos nadando nos dedos, a palavra que levava os pescadores ao longe e os trazia de volta... O mundo tão grande e simples. A longa canoa a unir dois portos. O falar alegre e tranqüilo do pai, a dizer que “o tempo do mar e o tempo da gente, muita vez é diferente”.
Um dia acordou no meio de uma noite funda e cheia de sons grandes e grandes balanços das águas, parecia que a casa era um barco solto no mar alto... Mas era o vento, ou, os ventos, pois pareciam muitos ventos, confusos, tortos, arfando, atropelados, vindos de todos os quadrantes, enroscando-se na galharia seca das árvores de agosto, tropeçando nos barrancos, caindo costeira abaixo e subindo até as barbas das montanhas rente ao mar. Na cozinha a velha tinha as mãos juntas e a cabeça levemente reclinada sobre a mesa, uma vela dentro da lata. Em silêncio, um silêncio imóvel dentro da longa noite que nunca teve fim... Mas esse silêncio continha todas as palavras da avó, ditas por dentro. A velha olhou a menina e seus olhos eram duas ilhas anuviadas e continham todas as chuvas, mas elas não caíam... A menina leu isso na face da velha e reparou como a pele do seu rosto parecia igual às cascas de certas árvores da mata fechada e sentiu o medo que as jovens aves tem nas suas primeiras grandes travessias sobre o oceano e se aninhou no colo da avó e dormiu...
Quando acordou, o mundo estava calmo de novo, mas as areias tinham mudado de lugar e as árvores andaram para trás... e o silêncio parecia um barco grande e pesado fincado na areia da praia, sem leme.
Foi a noite em que os ventos arremessaram todas as palavras do pai para longe, nenhuma ilha para recuperá-las, elas misturaram-se às águas e entraram no diálogo dos peixes, das tartarugas, das algas, das cavernas submarinas e dos corais...
E a menina conversava essas coisas que ela não entendia, com o mar, que a ouvia como ouvia ainda as palavras da avó quando ela também era menina... E para o mar era como se as duas fossem uma só, pois para o mar só existe um tempo, o tempo de existir sempre.
(O LIvro do Mar, Santiago Bernardes, Editora Vindouros)
http://vindouros.com.br/loja/o-livro-do-mar/
Ela era instruída nos mistérios da terra e do mar, isso ouvia todos da vila dizerem, com um misto de respeito e espanto. Mas a menina gostava também dos silêncios da velha senhora de pele morena visitada pelo sol todo dia e de longos cabelos e tão brancos como a crista de uma onda... como as antigas ondas que traziam a canoa do pai. Em que praia será que elas batem agora?!...
Não sabia há quanto tempo morava com a vó, mas achava que era bastante pois o tempo anda diferente perto do mar, enferruja, passa lento, encrespa, bate na costeira... e às vezes faz o mar cair por cima do jundú como se tivesse sede e quisesse beber os rios direto nas cachoeiras, sem esperar que eles cheguem até a praia.
Essas coisas a menina olhava e se enveredava por dentro delas no pensamento de forma que todos diziam ter “puxado pela avó” nessas coisas de mar e de terra e de plantas e de peixes e de gente, desse e de outros mundos.
Mas por enquanto a menina gostava mais e se interessava era nas coisas desse mundo mesmo. E havia tanta coisa a ver e a avó era um caminho de aprender. Caminho antigo, vindo de muitas luas e estações. Como os troncos de cedro ou guapuruvu que viravam canoas, muitas luas crescendo, subindo, espiando os ventos por alto até os homens cortarem e fazerem as canoas... Mas aí o tronco levava a memória da árvore de espiar do alto as águas e já conhecia muitos dos caminhos do mar. Mas não todos, que todos nem o próprio mar sabe.
Essas coisas pensava a menina, nas suas andanças pela praia, pelo quintal, pelos mangues, ou sentada na areia, apenas olhando... “oceanolhando as coisas”, como a avó dizia. Ela gostava do jeito que a velha tratava as palavras, misturando-as, como peixes na rede, ou inventando novas palavras e fazendo elas nadarem no ar com um jeito de brisa levinha que vai sumindo...
Ela lembra que a avó sempre fala que as palavras são como as plantas, podem curar ou podem adoecer a carne. Por isso a velha tinha muito cuidado com o tratar das plantas, e das palavras. Nunca viu a avó escrever no papel, mas a menina sabia que a velha escrevia com outras coisas, com raízes, com ervas, com cascas e cipós. Escrevia coisas que a mata dizia através das plantas e da terra e isso era uma coisa que a menina queria aprender a ler. E a avó era um caminho de ensinar.
Muitos dias acompanhou a avó pelas trilhas, pelas praias desertas, pelas grutas e rios do sertão... catando ervas, cipós, cascas, observando os bichos e o chão, aprofundando o sentir dos cheiros, bebendo nascentes com os olhos...muitas madrugadas foi com ela até a beira do mar ver o pai embarcar na canoa com os camaradas e seguir deslizando sobre o verde azul de águas, à procura de peixes e destinos, o beijo salgado na testa, os cabelos nadando nos dedos, a palavra que levava os pescadores ao longe e os trazia de volta... O mundo tão grande e simples. A longa canoa a unir dois portos. O falar alegre e tranqüilo do pai, a dizer que “o tempo do mar e o tempo da gente, muita vez é diferente”.
Um dia acordou no meio de uma noite funda e cheia de sons grandes e grandes balanços das águas, parecia que a casa era um barco solto no mar alto... Mas era o vento, ou, os ventos, pois pareciam muitos ventos, confusos, tortos, arfando, atropelados, vindos de todos os quadrantes, enroscando-se na galharia seca das árvores de agosto, tropeçando nos barrancos, caindo costeira abaixo e subindo até as barbas das montanhas rente ao mar. Na cozinha a velha tinha as mãos juntas e a cabeça levemente reclinada sobre a mesa, uma vela dentro da lata. Em silêncio, um silêncio imóvel dentro da longa noite que nunca teve fim... Mas esse silêncio continha todas as palavras da avó, ditas por dentro. A velha olhou a menina e seus olhos eram duas ilhas anuviadas e continham todas as chuvas, mas elas não caíam... A menina leu isso na face da velha e reparou como a pele do seu rosto parecia igual às cascas de certas árvores da mata fechada e sentiu o medo que as jovens aves tem nas suas primeiras grandes travessias sobre o oceano e se aninhou no colo da avó e dormiu...
Quando acordou, o mundo estava calmo de novo, mas as areias tinham mudado de lugar e as árvores andaram para trás... e o silêncio parecia um barco grande e pesado fincado na areia da praia, sem leme.
Foi a noite em que os ventos arremessaram todas as palavras do pai para longe, nenhuma ilha para recuperá-las, elas misturaram-se às águas e entraram no diálogo dos peixes, das tartarugas, das algas, das cavernas submarinas e dos corais...
E a menina conversava essas coisas que ela não entendia, com o mar, que a ouvia como ouvia ainda as palavras da avó quando ela também era menina... E para o mar era como se as duas fossem uma só, pois para o mar só existe um tempo, o tempo de existir sempre.
(O LIvro do Mar, Santiago Bernardes, Editora Vindouros)
http://vindouros.com.br/loja/o-livro-do-mar/
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